Artistas Convidados – Jônatas Manzolli e Marcos Mucheroni
Modalities est Agnus Dei
O belo natural contrapõe-se ao belo digital. No belo digital, a negatividade do diferente foi por completo eliminada. Por isso, ele é totalmente polido e liso. Não deve conter dilaceração alguma.
O seu signo é o da complacência sem negatividade: o Gosto. O belo digital constitui um espaço polido e liso do idêntico, um espaço que não tolera qualquer estranheza, qualquer alteridade.
Byung-Chul Han, “A salvação do Belo” (2016), p 37.


A Instalação
Modalities est Agnus Dei é uma obra multimodal relacionada à pintura “Agnus Dei” de Josefa d´Óbidos e ao Réquiem de Mozart. Essa instalação foi criada para o VI Retiro Doutoral da Universidade Aberta de Lisboa, Óbidos, julho 2019.
A partir da pintura “Agnus Dei” de Josefa d´Óbidos (1630-1684), associamos a modalidade musical à Missa em Ré Menor de Wolfgang Amadeus Mozart (1746-1791), K 626, conhecida como o “Réquiem de Mozart”.
A natureza sacra das duas obras nos levou ao conceito de música das esferas celestes, que remonta à Grécia Antiga e aos primórdios do uso do monocórdio por Pitágoras.
Música das Esferas
A música das esferas, denominada também de harmonia das esferas ou música universal, é um conceito ancestral grego (PROUST 2011). Pitágoras de Samos (570 a.C. – 495 a.C), foi talvez o primeiro a estabelecer conexões entre eventos celestes e as proporções matemáticas de números inteiros.
Pitágoras também associou essas proporções à construção dos modos gregos (i.e., escalas musicais) e, por extensão, às propriedades de consonância/dissonância dos intervalos musicais. Essas últimas relativas à combinação de duas ou mais notas superpostas. Vem daí a denominação de harmonia das esferas.
Os ensinamentos de Pitágoras estão associados ao oráculo de Delfos que tinha como Sacerdotisa suprema Pítia (talvez a origem do nome de Pitágoras). Ela era a mensageira do Deus-Sol Apolo e transmitia as diretrizes de seu pai Zeus. A cosmologia de Pítia partia da ideia que, sendo harmônico, o universo seria organizado através da regularidade de seus ciclos. E assim, executaria a chamada música das esferas celestes, a partir da órbita dos planetas.
Por fim, os integrantes dessa orquestra universal seriam os sete corpos celestes conhecidos na época: a Lua, Mercúrio, Vênus, o Sol, Marte, Júpiter e Saturno. Eles orbitariam em torno da Terra em movimentos do epiciclo e círculo deferente. Nessa suposta órbita coordenada ou orquestrada, produziriam uma espécie de melodia celeste.
Cosmovisão
A física contemporânea demonstrou a existência das chamadas “ondas gravitacionais” que são produzidas por fortes interações cósmicas. Em 14 de setembro de 2015, o projeto LIGO (BARISH, WEISS 1999) detectou as distorções no espaço-tempo causadas pela passagem de ondas gravitacionais. A possível existência dessas ‘ondulações’ no espaço-tempo foi prevista por Albert Einstein em 1916, na Teoria Geral da Relatividade.
Intuitivamente, a ideia é que corpos celestes com grande massa, como estrelas de nêutrons ou buracos negros, perturbam o espaço-tempo de tal forma que ’ondas’ de espaço distorcido irradiam dessas fontes.
Pode-se fazer uma analogia ao movimento da água quando uma pedra é jogada e produz ondulações na sua superfície. Essa ideia acústica faz com que imaginemos a possibilidade de “ouvir as ondas gravitacionais” (BERRY 2015, BLAIR 2018). Mesmo que não haja som no vácuo cósmico. E essa analogia serviu à composição da cosmologia da instalação.
Viajando à velocidade da luz, as ondas gravitacionais têm consigo informações sobre a origem do Universo. Eventos intensos e catastróficos deixaram pistas de sua origem nessas viagens pelo cosmo. Colisões de buracos negros, colapsos de estrelas, estrelas de nêutrons e, até mesmo, as radiações geradas no nascimento do Universo.
Modalidade Agnus Dei na pintura de Josefa d´Óbidos
Josefa de Ayala Figueira, conhecida como Josefa d’Óbidos, nasceu em Sevilha, fevereiro de 1630. Viveu nos arredores de Óbidos, na Quinta da Capeleira, com sua mãe, Catarina de Ayala Camacho Cabrera Romero, que conheceu o pai português, o pintor Baltazar Gomes Figueira, natural de Óbidos. Destacamos que Figueira, o sobrenome de Josefa e de seu pai, é de origem judaico-cristã, pois os cristãos novos adotavam nomes de plantas.
O quadro “Cordeiro Pascal Agnus Dei” foi pintado entre 1660 e 1670 e se encontra no Museu de Evora. O seu estilo barroco de natureza morta é característico do período chamado “Siglo d´Oro” das artes. Nele havia um novo olhar sobre a natureza ao se integrarem nas pinturas floreiros, cenas de caça e representação de animais e natureza morta.
Era o período da contrarreforma, o que fez Josefa trabalhar esses elementos com temas bíblicos como a videira, o trigo, a figueira e o linho. Tal procedimento levou a um número significativo de simbologias com referências cristãs (AZAMBUJA 2009).
A obra Natureza-Morta com Limões, Laranjas e uma Rosa de Francisco de Zurbarán, que pertence ao acervo do museu Del Prado, representa muito bem a influência do estilo ibérico dos “bodegóns” e “floreros”, da época.
Os Artefactos: Holograma e Animação
No holograma e na animação projetados para a instalação há uma movimentação lenta das flores da pintura de Josefa. O “bodegón” da base se movimenta na horizontal e o cordeiro tem um piscar de olhos somente ao final da animação.
Esse movimento dos olhos do Cordeiro representa que está vivo, mas permanece quase imóvel. Assim, a construção do artefacto visual mimetiza o estilo de natureza morta de Josefa.
O holograma é composto de 42 quadros, iniciando com a moldura vazia, nela somente os pensamentos estão presentes. Depois aparecem repetidas duas vezes a expressão “pecatta mundi”, numa referência ao texto da missa mozarteana.
A animação segue num crescente com a paisagem sonora e aparece ao centro “Agnus Dei qui tollis peccata mundi, Dona eis Requiem” e, finalmente, a imagem do Cordeiro. As flores (o “florero” como são denominados este tipo de pintura) se movimenta e abaixo o “bodegón” faz um movimento de entrada horizontal.
Todos os movimentos são lentos interagindo com a estrutura de natureza morta e a forma barroca de construir a imagem. À medida que a intensidade da paisagem sonora aumenta, o cordeiro movimenta os olhos. Essa interação das dinâmicas visual e sonora cria um vínculo entre as duas modalidades e potencializa a imersão do visitante.
Ficam combinadas na instalação a representação holográfica (na parede frontal), a presentação digital (na parede esquerda) e a representação na forma de paisagem sonora.
Na planta baixa há quatro pontos que indicam a localização dos alto-falantes, encobertos do visitante e o controle externo feito com o computador.
Planta baixa da instalação “Modalities Est Agnus Dei.”
A Modalidade Agnus Dei na Música: a missa Mozarteana
A Missa de Requiem em Ré menor, K. 626, de Wolfgang Amadeus Mozart (1756–1791) representa a modalidade musical da instalação. Essa obra foi composta no final de 1791, próxima da morte do compositor, em 5 de dezembro desse mesmo ano. Trata-se de uma obra inacabada e há vários pontos sobre o processo criativo e autoria da obra que continuam desconhecidos (LANDON 1988).
Sabe-se da popularização da ideia, por parte da viúva de Mozart, Constanze, que a obra seria encomendada por um misterioso mensageiro, que não revelou a identidade do comissário, e que Mozart imaginava que a obra seria estreada no seu velório. Moseley (1989) atualiza alguns aspectos importantes que estavam em aberto.
Esse aparente estresse psicológico foi utilizado pelo diretor checo-americano Miloš Forman na sua obra cinematográfica Amadeus (1984). Trata-se da cena em que um personagem de capa preta bate à porta e entrega um saco de moedas com o valor inicial da encomenda. Mozart fica aterrorizado!
Sabe-se que Mozart terminou e orquestrou a introdução do Réquiem. Deixou também rascunhos detalhados do Kyrie, do Ofertório e oito compassos do movimento Lacrimosa.
Posteriormente, Franz Xaver Süssmayr utilizou esses rascunhos para concluir a obra cerca de dois meses depois da morte de Mozart. O conde Franz von Walsegg encomendou a Süssmayr o Requiem que foi estreado no aniversário da morte da esposa do conde, em 14 de fevereiro de 1792.
O Artefacto musical: paisagem sonora
O texto do Requiem não foi o único vínculo com a obra de Josefa. O elemento de coesão da instalação veio do modo como Mozart trabalhou a harmonia e as vozes do coro. Partimos de um excerto da parte vocal no qual as quatro vozes cantam o texto simultaneamente. Essa disposição da partitura nos deu o insight para a composição da modalidade sonora.
A estratégia foi desmontar a sequência “agnus dei peccata mundi”, utilizando o computador, para então (re)criar a obra original na forma de uma paisagem sonora.
Decidimos utilizar um processo de colagem sonora para preservar as características do Requiem. Assim continuam presentes a sonoridade mozarteana e o texto original.
Os trechos selecionados foram tratados com o computador para soarem como num espaço reverberante. A ideia foi levar o visitante à imersão na acústica de uma catedral. Finalmente, a paisagem sonora foi criada com a sobreposição dos recortes
Órbitas Criadas com Colagem Digital
A paisagem sonora e a animação são executadas em ciclos independentes. Esse processo faz com que haja uma variação constante de combinações entre o som e os quadros da animação e do holograma. Da mesma forma, que as orbitas dos sistemas planetários, os três artefactos orbitam entre si durante a instalação.
A duração da paisagem sonora é de 11 minutos que foram divididos em 14 seções, de A-N. Cada uma das seções foi estruturada com diferentes excertos e as suas superposições.
Para os 11 minutos da paisagem, há 42 quadros por minuto de animação. Ou seja, o ciclo se repete após 462 quadros. A colagem digital, permite a construção de um campo combinatório, nas interações entre os três elementos da composição. Há várias situações de encaixe, na multiplicidade de órbitas dispostas à apreciação do visitante. Assim, a cosmologia que almejamos é concretizada na instalação.
A composição da cosmologia da instalação é parte de uma série de colaborações e especulações dos autores. Na primeira, estreada no Artefacto 2018, no Palácio da Ceia em Lisboa, a motivação foi o diálogo entre Arte e Ciência do Manifesto Místico de Salvador Dalí (1951). O processo criativo se vinculou ao entendimento que a obra-prima de Dalí propôs uma interação entre Arte, Matemática e Física.
A Ode ao Christus Hypercubus, levou o espectador à experiência multimodal de reconstruir o Organum Medieval junto à concatenação de fragmentos do quadro de Dali e com intervenções do piano e solo de uma soprano (MANZOLLI 2018).
Interação Multimodal
O resultado sonoro do esquema de montagem é entendido como uma apresentação digital do Réquiem. Com a colagem digital reiteramos a estrutura da escrita original e introduzimos um novo elemento de significação.
Tanto nos elementos visuais da instalação (animação e o holograma) quanto na paisagem sonora, aplicamos um processo de colagem digital. Na animação e no holograma, os elementos estruturais da pintura foram recortados para enfatizar aspectos relevantes da estética e do significado da obra. As flores, o “bodegón” e principalmente a imagem do cordeiro, são (re)introduzidos em dois suportes visuais diferentes e o movimento lento mimetiza o sentido de natureza morta e o estilo barroco da pintura de Josefa.
Conclusão
Em “Modalities Est Agnus Dei” almejamos com a música de Mozart introduzir um elemento sonoro que evoca relações de afeto em ressonância à imagem do cordeiro pascal de Josefa. Pensamos que a integração da pintura com a música traga em si um senso cosmológico. Em Mozart, a missa reflete a cosmogonia cristã ocidental no texto em latim: “Agnus dei, Qui tollis peccata mundi, Dona eis requiem”. Pode-se pensar o humano em desarmonia com o universo e a imagem do cordeiro como a representação o divino: o todo ontológico, o Ser em sua essência.
Na busca desse sentido cosmológico, reiteramos o simbolismo das duas obras na representação holográfica da pintura de Josefa, na paisagem sonora da missa mozarteana e na apresentação da animação digital. Parafraseando Husserl (1986), a instalação nos dá o que é inacessível por fatores temporais e físicos, mas tornam-se acessíveis na disposição, na permanência harmoniosa dos artefactos e na busca por uma harmonia universal.
Agradecimentos
Agradecemos as sugestões da professora Helena Jank na estruturação do texto e a colaboração do doutorado do NICS, Eduardo Hebling, na revisão do texto. O Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) apoia a pesquisa de Manzolli com os projetos CNPq 429620/2018-7 e CNPq1B 304431/2018¬4.
Referências
AZAMBUJA, S.T. (2009). A Linguagem Simbólica da Natureza. A Flora e Fauna na Pintura Seiscentista Portuguesa. Lisboa: Nova Veja.
BARISH, B.C., Weiss, R. (1999). LIGO and the Detection of Gravitational Wave, Physics Today. 52 (10): 44. doi:10.1063/1.882861.
BERRY, C. (2015) Listening to the gravitational universe: what can’t we see? Disponível: <https://unibirmingham.tumblr.com/post/118939268978/listening-to-the-gravitational-universe-what>. Acesso em: 03 jun. 2019.
BLAIR, D. (2018) Why can you hear gravitational waves? Cosmos Conversation Geoscience, Disponível em: https://cosmosmagazine.com/geoscience/why-can-you-hear-gravitational-waves. Acesso em: 03 jun 2019.
BYUNG-CHUL, H. (2016). A salvação do Belo. Trad. PEREIRA, M. S. Relógio D’Água Editores. ISBN 978-989-641-617-1.
HUSSERL, E. (1986), Méditations cartésiennes : Introduction à la phénoménologie, trad. Mlle Gabrielle Peiffer, Emmanuel Levinas), J.VRIN, coll. «Bibliothèque des textes philosophiques».
LANDON, H.C. (1988). 1791: Mozart's Last Year. New York: Schirmer Books.
MANZOLLI, J. (2018). Ode to Christus Hypercubus: creative process of a multimodal performance. In: Proceedings of ARTeFACTo 2018, pg. 11-15.
MOSELEY, P. (1989). Mozart's Requiem; A Revaluation of the Evidence, Journal of the Royal Musical Association. 114 (2). p. 211.
PROUST, D. (2011) Harmony of Spheres: from Pythagoras to Voyager 2. In: Valls-Gabaud, D. & Boksenberg, A. (eds.). The Role of Astronomy in Society and Culture. Proceedings of the IAU Symposium No. 260, 2009. International Astronomical Union, 2011, pp. 358-367.
Jônatas Manzolli combina a criação musical contemporânea e as ciências cognitivas com foco nos diálogos entre música e ciência. O estudo interdisciplinar resulta em trabalhos eletroacústicos, instrumentais e multimodais. Compositor e matemático, professor titular do Instituto de Artes da Universidade de Campinas, Brasil, é pioneiro na pesquisa brasileira em música computadorizada. Foi investigador convidado no Instituto de Neuroinformática da Suíça e no SPECS Group (SPECS) na Universitat Pompeu Fabra, Barcelona. Ele também é colaborador do CIRMMT, McGill University, Montreal. As realizações mais notáveis de Jônatas Manzolli enfatizaram a delicada relação entre homem e máquina, incluindo o uso da inteligência artificial como interfaces digitais como Ada: Intelligent Space (2002) e a Multimodal Brain Orchestra (2009). Suas composições também incluem grandes cenários orquestrais, como a ópera multimodal Descobertas (2016). Ele recebeu inúmeros subsídios e prêmios, incluindo o recente Prêmio “Arts & Literary Arts” da Fundação Rockefeller, para ser artista residente no Bellagio Center, Itália, em abril de 2018.
Marcos Luiz Mucheroni é formado em Ciência da Computação pela Universidade Federal de São Carlos, possui mestrado e doutorado pela Escola Politécnica da USP.
É professor e conselheiro em Ciências da Informação na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo. Pós-doutorado na UAb, já tendo participado em várias palestras e júris em Portugal, é co-presidente do evento Artefacto a realizar nos dias 17 e 18 de novembro de 2018.
Seus tópicos de pesquisa são Web Semântica, Ontologias, Redes Sociais e Inteligência Artificial. Ele já trabalhou em projetos Open Source, Open Science e atualmente trabalha dois doutorados em Ciência Aberta e um Ph.D. em Citações Abertas.